Teoria do Trauma
TRAUMA - É possível evitar o pior
Terapia criada pelo americano Peter Levine ajuda a eliminar a energia acumulada nos eventos traumáticos.
Entrevista a Gustavo Prudente
O trauma faz parte da condição humana. Essa é a tese defendida por Peter Levine, 64, terapeuta americano que há cerca de trinta anos trabalha com o tema. Ao se questionar por que somente os humanos padecem desse problema, muito embora os animais passem diariamente por situações de perigo, Levine percebeu que nós, ao contrário dos animais, somos em muitos casos inibidos de completar o ciclo fisiológico natural do corpo após um evento traumático. Segundo o terapeuta, o acúmulo de energia depois de situações estressantes é eliminada espontaneamente pelos bichos por meio de reações como tremores, enquanto nós podemos manter a energia congelada por anos, dando vazão a sintomas que vão de dores crônicas a pânico e depressão. Para ajudar as pessoas a eliminar gradativamente esse acúmulo de energia, Levine criou a Experiência Somática, abordagem que hoje conta com cerca de 1800 profissionais em cerca de 18 países – 200 só no Brasil. Seu livro mais famoso, “O Despertar do Tigre” (Editora Summus), foi traduzido para 11 línguas e explica as bases de suas teorias.
Se você fosse fazer um relatório sobre o trauma nos últimos 30 anos, qual seria o resultado?
A definição atual do trauma nos levou para longe da experiência do que realmente é. Entre os indígenas, na América do Sul, havia muito conhecimento sobre o trauma, e eles o chamavam de “susto”, para usar o termo em português. Isso realmente expressa o sentimento do que ele realmente é. O trauma é parte da condição humana. Mesmo quando não existem guerras ou desastres naturais horríveis, ainda assim nosso sistema nervoso pode se sobrecarregar, a ponto de colapsar. Então, acho que um relatório sobre o trauma teria de dizer que a situação geral está pior. E quando as pessoas estão traumatizadas, elas tendem a reagir de duas formas: ou ficam doentes e desenvolvem sintomas ou elas atuam o trauma, geralmente por meio da violência.
O que é pior: o aumento de situações traumáticas ou a diminuição da nossa capacidade de deixar o organismo lidar com elas?
A violência não muda rapidamente, nem os desastres naturais – eles só vão piorar. A questão é como ajudar as pessoas a não se tornarem traumatizadas. Nós enviamos dez terapeutas, para a Tailândia e a Índia, após a tsumani, para trabalhar com crianças e adultos que perderam seus familiares. O impressionante é que num período curto de tempo, às vezes menos de uma hora, essas pessoas foram capazes de evoluir do choque e da completa impotência para engajar-se de novo em suas vidas. Você podia ver em seus rostos e em seus corpos que eles estavam experimentando alegria. Uma mulher nos disse: “agora eu posso ir procurar meus filhos”, referindo-se ao lugar onde eles mantinham os corpos das vítimas. Atualmente, também estamos trabalhando com as vítimas do furacão Katrina, nos Estados Unidos.
E como foi feito esse trabalho?
Trabalhamos com algumas pessoas individualmente, e boa parte de forma não-verbal. Como muita coisa está no corpo, pois se tratam de respostas biológicas e fisiológicas, quando guiamos as pessoas a ir além dessas respostas, não usamos muita conversa. Não analisamos demais as coisas.
Todo trauma pode ser curado, ou há traumas com os quais é muito difícil lidar?
Sim, há traumas muito difíceis de lidar. A negligência e a brutalidade durante a infância são, na verdade, os traumas mais profundos. Podemos ajudar essas pessoas, e de forma excelente, algumas vezes. Mas acho que, para elas, é uma grande luta, muito embora elas possam ser curadas. Temos trabalhado, inclusive, com psicóticos. Mas isso exige habilidades especiais e tempo – talvez um a três anos de terapia.
Sua terapia é muito diferente da terapia analítica e da terapia catártica. Por que isso? Esses outros tipos de terapia podem contribuir para agravar o trauma?
Comumente, quando há muito trabalho catártico, a pessoa pode retraumatizar, porque ela revive o que aconteceu, e o sistema nervoso não consegue diferenciar quando é real e quando você está revivendo. E quanto a falar… Veja, a parte do cérebro que é afetada pelo trauma é a parte primitiva – o cérebro límbico e instintivo. Então, as palavras não possuem nenhum efeito aí – mas a consciência sim. Você pode usar as palavras para ajudar as pessoas a ficarem conscientes. Na verdade, nós encorajamos as pessoas que já fazem outras terapias a incorporarem o que nós ensinamos.
Você tem alguma dica para que as pessoas previnam o trauma?
Em muitos casos, depois que coisas assustadoras acontecem com as pessoas, elas vão chacoalhar e tremer e têm sentimentos variados. E isso é parte do processo de cura. Nesse caso, a pessoa que está com elas deve dizer: “está tudo bem, deixe isso acontecer”, ou até mesmo embalá-las – talvez não fisicamente, como você embala um bebê, mas embalá-las com a sua presença.
Peter Levine explica, em O despertar do Tigre (Summus Editorial): “O choque traumático ocorre quando experienciamos acontecimentos potencialmente ameaçadores à vida que superam nossa capacidade para responder de modo eficaz”.[...] E adiante: “Um humano ameaçado precisa descarregar toda energia mobilizada para negociar essa ameaça ou se tornará uma vítima do trauma. A energia residual não vai simplesmente embora. Ela persiste no corpo e, com freqüência, força a formação de uma grande variedade de sintomas, por exemplo: ansiedade, depressão, problemas psicossomáticos e comportamentais. Esses sintomas são o modo do organismo conter (ou encurralar) a energia residual não descarregada”.
Memória, Trauma e Cura
Por.: Peter Levine, Ph.D. – Tradução.: Hulda Bretones
Artigo originalmente publicado em inglês sob o Título “Memory, Trauma and Healing” by Peter A. Levine, Ph.D. em Alternative Health Practitioner, No. 2, Summer 1998 – EUA .
“A função do cérebro é selecionar o passado para diminuí-lo, simplifica-lo, mas não preserva-lo”. – Henri Bérgson, em A Mente Criativa, 1911
A atual controvérsia sobre a assim falada falsa “recuperação” da memória traumática, levanta uma série de questões intrigantes para os terapeutas. De onde estas memórias “falsas” vêm e qual a função delas? Ainda mais importante que isto, qual é a função da memória na compreensão e tratamento do trauma?
Por volta de 1.900, o filósofo francês Henri Bérgson trouxe à luz alguns ‘insights’ profundos sobre a natureza da memória, que só recentemente vêm sendo considerados pelos pesquisadores e clínicos contemporâneos. Bérgson teorizou que existem duas formas diferentes e fundamentais de memória; uma consciente e outra inconsciente. O neurocientista Daniel Schacter (1996), em um volume de leitura agradável, intitulado “Investigando a Memória”, descreve o estudo de um paciente que havia sofrido um sério ferimento na cabeça. Este homem (chamado Mickey) não tinha memória de suas experiências recentes. Em uma entrevista, Schacter indaga Mickey sobre uma série de questões triviais cujas respostas seriam dificilmente conhecidas, tais como, “Quem detêm o recorde mundial de dar apertos de mãos?”, “Aonde aconteceu o primeiro jogo de baseball?”. Sem qualquer surpresa, Mickey não sabia as respostas. A seguir, Schacter fornece as respostas. Indagado a respeito das mesmas questões vinte minutos mais tarde em outra sala, Mickey responde corretamente (Teddy Roosevelt e Hoboken, New Jersey, etc.). No entanto, ele não se lembra de como conseguira as informações. Pensa que talvez através de sua irmã. Então, embora ele tivesse uma memória implícita de seu encontro com Schacter vinte minutos antes, ele não tinha a memória explícita dele.
Observações semelhantes a esta, assim como extensas pesquisas realizadas por psicólogos experimentais, neurocientistas cognitivos e clínicos, confirmam que nós, humanos, possuímos duas formas nitidamente diferentes de memória; uma explícita e consciente, e outra implícita e inconsciente. A descrição do estranho comportamento de Mickey por Schacter ilustra a curiosa “dissociação” entre os aspectos conscientes e inconscientes da memória.
Existe um tipo de memória muito importante para a compreensão e o trabalho com trauma, que forma a base para a marca do trauma no corpo e na mente, que é implícita e profundamente inconsciente. O aspecto dinâmico da relação entre os elementos implícitos e explícitos de uma experiência é muito importante na resolução do trauma e na questão da memória “falsa”.
Memória como Procedimento
O tipo de memória utilizado no aprendizado da maioria das atividades físicas (andar, dirigir um carro, andar de bicicleta, esquiar, etc.) é uma forma de memória implícita chamada “memória de procedimento”. Memórias de procedimento ou “memórias corporais” são seqüências aprendidas de “atos motores” coordenados e reunidos em ações de mesma intenção. Você pode não lembrar explicitamente como e quando você aprendeu as ações (como Mickey), mas no momento apropriado elas são (implicitamente) “lembradas” e realizadas simultaneamente. Estas “memórias motoras” (padrões de ação) são basicamente formadas e orquestradas por estruturas involuntárias no cerebelo e gânglio basal.
Procedimentos são primariamente não conscientes, e os esforços em aprendê-los conscientemente geralmente são contra-produtivos. Imagine tentar aprender como andar de bicicleta, esquiar ou fazer sexo através de instruções escritas. Impossível fazê-los. Um livro pode lhe apontar a direção ou indicar por onde começar, mas a aprendizagem acontece instintivamente, através do erro e do acerto.
Trauma diz respeito a procedimentos que o organismo executa quando exposto a um estresse extremo, a ameaças e danos. A falha em neutralizar estes procedimentos implícitos e retomar a homeostasia está na base dos sintomas debilitantes e mal-adaptados do trauma.
Completar e Lembrar
“As ações devem prosseguir até que se completem. Qualquer que seja o ponto de partida, o fim será belo. Uma ação é vil (somente) porque não foi finalizada”. – Jean Genet, Thief’s Journal
Em resposta às ameaças e danos, os animais, incluindo os humanos, executam padrões de ações não conscientes e biologicamente determinados que os preparam para o encontro com a ameaça e para a sua defesa. A estrutura do trauma, incluindo a ativação, a dissociação e o congelamento, está baseada nos comportamentos evolutivos de sobrevivência predador-presa dos répteis, mamíferos e primatas. Quando ameaçados ou machucados, os organismos recorrem a uma variedade de respostas motoras possíveis, corroboradas por ajustes nos sistemas nervoso autônomo e visceral. Orientamo-nos, planejamos, esquivamo-nos, endurecemos, retraímo-nos, encolhemos, retratamo-nos, lutamos, fugimos, congelamos, corremos, colapsamos, etc. Todas estas respostas coordenadas são biologicamente determinadas – são ações que o corpo faz para proteger e defender a si mesmo. Só quando estas respostas de orientação e defesa são oprimidas, soterradas destruídas, interrompidas, confundidas ou dominadas por completo é que o trauma acontece.
Os corpos das pessoas traumatizadas retratam as marcas de suas tentativas frustradas, não bem-sucedidas, de defender a si mesmos diante da ameaça e dano. Porque as respostas foram soterradas, sua execução, normalmente contínua à ameaça, tornou-se truncada, mutilada.Trauma é fundamentalmente uma resposta biológica de defesa incompleta, altamente ativada, congelada no tempo. Por exemplo, quando nossa maquinaria neuromuscular e metabólica nos preparam para a luta ou a fuga, músculos pelo corpo inteiro tornam-se tensos em padrões específicos de prontidão de intensa carga energética. Quando somos incapazes de completar as ações apropriadas, descarregando assim a tremenda carga energética gerada pela resposta de prontidão, esta energia permanecerá presa a padrões específicos de prontidão neuromuscular. O feedback aferente para o tronco cerebral gerado por estas respostas neuromusculares autônomas incompletas mantém um estado de aguda, e a seguir crônica, ativação e disfunção no sistema nervoso central. Pessoas traumatizadas não estão sofrendo em decorrência de uma doença no sentido normal da palavra. Elas se tornaram fixas em um estado de ativação. É difícil (senão impossível) funcionar normalmente dentro de tal circunstância.
As respostas residuais incompletas (as “marcas” das tentativas mal sucedidas de defesa) são as bases da memória (implícita) traumática. Assim como Mickey foi incapaz de se lembrar como havia obtido as respostas às perguntas triviais, o trauma não é “lembrado” em uma forma consciente e explícita. Ele é codificado como procedimento implícito baseado em reações de sobrevivência biológicas. Estes procedimentos incompletos procuram a realização e integração, e não a recordação (explícita). A compulsão que tantos sobreviventes de trauma têm de “lembrar” é, freqüentemente, uma interpretação errada da profunda premência e necessidade de completar (finalizar) as respostas de sobrevivência, altamente carregadas, que foram abortadas ou mutiladas no momento em que foram solapadas. Este é um fator significativo na gênese da memória “falsa”.
Numa tentativa de racionalizar suas respostas de sobrevivência hiperativadas (incompletas) as pessoas traumatizadas irão, com freqüência, criar estórias explícitas e energeticamente equivalentes às suas experiências internas. Estas memórias podem ser precisas somente no sentido de serem metáforas para o que está armazenado implicitamente. Muitos sobreviventes de trauma precisam de uma “explicação” para os seus estados internos perturbadores. Por exemplo, tenho trabalhado com inúmeras pessoas que chegaram até mim completamente certas de que tinham sido molestadas ou raptadas quando crianças. Em muitos casos, as pessoas estavam corretas, mas não em todos eles. Vários clientes tinham criado interpretações que pareciam explicar seus sintomas, mas, na verdade, eles haviam sido traumatizados por procedimentos cirúrgicos na primeira infância. Para uma criança, um procedimento cirúrgico assustador pode ser vivido como um rapto.
Não é imprescindível que você se lembre explicitamente do evento traumático para que a cura aconteça. O trauma é implícito. O que é verdadeiramente importante para a resolução do trauma é a finalização das respostas incompletas à ameaça e, em seguida, a descarga da energia mobilizada para a sobrevivência. Quando a memória (de procedimento) implícita é ativada e finalizada no e pelo corpo, uma narrativa explícita pode ser construída; não o contrário disso. Deste modo, os sobreviventes podem começar a se re-lembrar, isto é, a associar os aspectos separados (dissociados) de suas experiências corporais e descongelar as energias congeladas, que é o âmago de seus traumas. Assim, eles começam a integrar a experiência implícita em narrativas conscientes e coerentes. Estas estórias não são falsas nem verdadeiras. Elas contêm um equilíbrio de elementos (harmonização), alguns dos quais são historicamente fiéis e precisos. Outros são elementos simbólicos de estados sentimentais, enquanto a função principal de outros é a de impulsionar e promover o processo de cura.
Jody
Há vinte e cinco anos atrás, a vida de Jody foi profundamente abalada e prejudicada. Enquanto caminhava por um bosque próximo à casa de seu namorado, um caçador aproximou-se dela e iniciou um diálogo. Era Setembro, meio do mês. Havia uma neblina no ar – seu namorado e outros que por ali estavam não se surpreenderam quando viram alguém aparentemente cortando madeira. Na verdade, um homem louco estava violentamente golpeando por várias vezes a cabeça de Jody com sua espingarda. A polícia encontrou Jody inconsciente. Próximos do local encontravam-se lascas da coronha da espingarda, arrebentadas e espalhadas durante o violento ataque. Quando vi Jody pela primeira vez, a única recordação que ela tinha do evento era limitada e confusa. Ela lembrava vagamente do encontro com o homem e de acordar no hospital alguns dias depois. Jody vinha sofrendo de ataques de ansiedade, enxaquecas, problemas de memória, depressão, fadiga crônica e dores crônicas nas regiões da cabeça, costas e pescoço (diagnosticadas como fibromialgia). Ela foi tratada por fisioterapeutas, quiropratas e vários médicos. Um ano antes de nosso primeiro encontro, ela havia escorregado e caído de costas enquanto patinava no gelo. Depois desse evento, ela mal conseguia obter um desempenho razoável no seu dia-a-dia.
Jody, como muitos indivíduos feridos na cabeça e traumatizados, agarrava-se tenaz, desesperada e obsessivamente numa tentativa de recuperar a memória de seu trauma. Ela parecia dominada pela idéia inconsciente de que ao resgatar a memória, poderia se libertar das garras esmagadoras de sua experiência. Em nossa primeira sessão, Jody tentou duramente lembrar, reunir vagas imagens do hospital e a tênue recordação de estar conversando com o caçador; mas nada aconteceria; apenas uma frustração imensa… e um esforço intenso… tentando voltar à cena e retornar com o self intacto que conhecia antes do terrível ataque.
Quando insinuei que era possível encontrar a cura sem a necessidade de lembrar do evento, observei um brilho de esperança e uma expressão de alívio momentâneo no olhar e no rosto de Jody. Conversamos por algum tempo, recapitulando sua estória e seu grande esforço em desempenhar-se normalmente no seu dia a dia. Depois de traumas como este que Jody viveu, pessoas anteriormente normais sentem-se, com muita freqüência, levadas à beira da insanidade. Jody estava muito assustada; sentia um medo irracional de ter sido prejudicada para sempre.
Voltando sua atenção para as sensações corporais, Jody, lentamente, tornou-se consciente de vários padrões de tensão na região da cabeça e também do pescoço. Com o foco na sensopercepção (no original, ‘felt-sense’ *1), ela começou a observar uma urgência específica (interna-cinestésica) de virar e encolher o seu pescoço. Permitindo que esta “intenção” fosse executada em “micro-movimentos” lentos e graduais, ela sentiu um medo momentâneo e em seguida uma forte sensação de formigamento.
Permitindo que estes “movimentos intencionais” involuntários aparecessem e fossem “gradualmente” finalizados, Jody iniciou uma viagem para dentro e ao longo dos “traços de memória” implícitos e profundamente inconscientes do ataque traumático que havia sofrido. Aprendendo a caminhar dentro de uma tensão dinâmica, entre o controle flexível e a entrega a estes movimentos involuntários, Jody começou a experimentar suaves vibrações e tremores por todo o corpo. Assim, sempre de forma gentil, começou a libertar sua energia presa, truncada (não a partir da memória explícita – ela não tinha qualquer memória explícita neste momento). A memória implícita de Jody estava conduzindo-a no caminho a ser seguido.
Nas sessões seguintes, sua cabeça se desviaria enquanto seus braços e mãos se moveriam lentamente para cima e para frente, em uma postura protetora. Estes movimentos espontâneos eram algumas vezes acompanhados por um breve grito agudo, animalesco, praticamente idêntico aos pedidos de socorro registrados em espécies tão distintas e diversas como pássaros e macacos. Na seqüência, ela sentiu nas pernas o impulso de correr, seguido por posturas mais agressivas. Colocou lentamente os dentes à mostra e, usando suas mãos como se fossem garras, sentiu o ímpeto de combater seu assaltante. Então Jody percebeu sensações (vestibulares) de estar caindo. Sentiu o impacto de cair no chão, seguido de sensações de pânico e de ser ferida na frente e atrás da cabeça.
Completando estas várias respostas, de orientação, de pedido de socorro e de defesa, Jody foi capaz de perceber como ela (seu corpo) preparou-se para reagir na exata fração de segundo em que foi atacada. Ela tomou consciência do movimento de sua cabeça indo para trás e afastando-se, uma visão rápida do cabo da espingarda vindo em sua direção, suas mãos e braços movendo-se para cima; o impulso, antes congelado, de correr e a noção de correr; a profunda noção de lutar (o tremor); o golpe violento na cabeça; as rápidas baforadas, trazendo o odor peculiar do assaltante; o impacto de cair para frente batendo o rosto no chão, e as repetidas pancadas na parte de trás de sua cabeça. Por ser capaz de estender no tempo esta marca do alto impacto do choque, ela não só “relembrou” implicitamente o acontecimento, mas começou a experimentar uma profunda descarga orgânica e a capacidade inata do seu corpo de defender e proteger a si mesmo.
Caminhando adiante no tempo, através do ‘felt-sense’, ancorada nas sensações corporais, finalizando as respostas incompletas, Jody gradualmente prosseguiu em direção à restauração do seu self aprisionado, despedaçado e esmigalhado no momento do choque.
No Teatro do Corpo
Enquanto a memória explícita é acessada primariamente pela cognição, a memória implícita deve ser alcançada e tocada através do corpo. Senso-percepção (‘felt-sense’), como Gendlin denomina (*2), é relativamente subdesenvolvida na maioria dos adultos “pós-industriais” (embora façamos uso dela todos os dias). A sensopercepção é construída através de canais de informações sinestésicas, proprioceptivas, vestibulares e viscerais (autonômicas). Um fluxo (de estímulos) aferente entra no tronco cerebral como informação não consciente (instintiva), e é depois elaborado pela estrutura cerebral límbica (emocional) e pela neocortical (cognitiva). Através do ‘felt-sense’ a informação intraperceptiva (que forma a base inconsciente de toda a experiência) pode ser integrada e trazida para um nível consciente.
Jody, através de sua sensopercepção, foi capaz de extrair o sinal “intencional” de mover sua cabeça a partir da tensão aleatória vinda do ruído do plano de fundo. Repetindo, aqui o movimento “intencional” é não-consciente – é vivido (sentido) como se o corpo estivesse se movimentando por sua própria vontade (movimento volitivo), não por esforço consciente. Seguindo estes impulsos “intencionais” (designativos), vários micro-movimentos espontâneos (mas organizados) foram iniciados. Eram concluídos com a descarga das respostas de sobrevivência incompletas, sob a forma de tremores gentis e vibrações, acompanhados por calafrios e depois por transpirações quentes.
Jody foi sendo profundamente enriquecida por sua capacidade biológica de se defender, assim como pela descarga da energia e por sua habilidade, recentemente descoberta, de alternar entre o controle consciente e a entrega ao reino da sensação involuntária. Naquela fração de segundo, quando o homem enlouquecido levantou sua espingarda, o ‘corpo-mente’ primitivo de Jody orientou-se e selecionou de maneira rápida e apressada os procedimentos de defesa disponíveis e que pudessem ser executados. Embora ela não tenha chegado a executar a maioria destes procedimentos implícitos naquele momento, seu corpo foi energeticamente preparado para realizá-los. Completando estas ações de preservação de vida, vinte e cinco anos mais tarde, ela libertou a energia presa e adicionou ao seu repertório de recursos pessoais a descoberta de que ela tinha, de fato, tentado defender-se.
Nos arredores da África
Descrevi, recentemente, para Andrew Bwaneli, o tipo peculiar de chacoalho, tremor e respiração espontâneos que Jody e outros clientes exibiram em suas sessões. Ele é um biólogo de parques do Centro do Meio Ambiente Mzuzu, em Malawi, África Central. Ele balançou a cabeça euforicamente, e irrompeu;
“Sim… sim… sim! É verdade. Antes de lançarmos os animais previamente capturados de volta à selva, nós primeiro nos certificamos de que eles tenham feito exatamente o que você descreveu” Ele olhou para baixo, em direção ao chão e completou pausadamente: “Se eles não tremerem e respirarem desta maneira antes de serem soltos, eles não sobreviverão… eles morrerão”. Embora os humanos dificilmente morram de trauma, assim de forma tão direta, suas vidas são severamente reduzidas por seus efeitos. Afortunadamente, o trauma não precisa ser uma sentença.
Renegociação – Somatic Experiencing®
“Renegociação” é uma palavra que eu emprego para descrever o processo de cura ou resolução do trauma. É a gradual, gentil e hábil descarga das energias de sobrevivência intensamente comprimidas, acompanhada pela finalização “retrospectiva” das respostas biológicas de defesa e de orientação que foram congeladas no momento do colapso. Não é um reviver catártico do evento traumático, método este que leva a re-traumatização.
Somatic Experiencing® (Experiência Somática) – SE – é o nome que dei a este trabalho. É uma abordagem naturalista de cura do trauma desenvolvido através dos últimos vinte e cinco anos. O SE é baseado na compreensão da razão pela qual os animais na selva são raramente traumatizados, embora tenham suas vidas ameaçadas rotineiramente. A habilidade que estes animais tem de descarregar totalmente a alta ativação das energias mobilizadas para a sua sobrevivência e, depois, reassumirem o funcionamento normal (reorientação), aponta para uma capacidade inata e instintiva de resolução do trauma. Esta capacidade inata é compartilhada pelos humanos, e é um recurso poderoso quando utilizado apropriadamente.
O alicerce do Somatic Experiencing® (Experiência Somática) é construído em uma tradição de educação somática e psicoterapia de orientação corporal. Decorre de estudos neurobiológicos da interconexão multidirecionada entre corpo, cérebro e mente. O estresse pós-traumático é visto não como uma doença neuropsicológica permanente, mas como uma distorção funcional e largamente reversível nos caminhos somáticos, autonômicos e de múltiplas direções, que unem a mente e o corpo. O SE examina os caminhos críticos pelos quais as informações aferentes, vindas dos músculos, articulações e vísceras, é seqüencialmente retro-alimentada para porções primitivas do cérebro para regular os comportamentos de sobrevivência.
Esta abordagem emprega a educação sobre as sensações corporais e a conscientização das sensações corporais como ferramenta básica para alterar estes caminhos. Quando apropriado, a manipulação gentil dos músculos, das articulações e das vísceras é empregada. As estratégias biológicas que habilitam os animais restaurarem a homeostasia após serem ativados por ameaças são aprendidas pelos indivíduos traumatizados. Fortificadas por estes recursos inatos, as pessoas podem transformar o trauma. A viagem de cura ocorre em primeiro lugar no nível biológico e arquetípico, e não no nível cognitivo e biográfico.
Fisiologia do Trauma
Quando Jody começou, de forma gradual, a acessar e liberar a ativação presa nos músculos de sua cabeça, pescoço e ombros, permitindo a finalização das respostas de defesa e proteção mutiladas, seu sistema nervoso foi capaz de alterar o seu ponto de regulação para ativação. A maioria dos pesquisadores psiquiátricos acredita que a química cerebral é permanentemente alterada como resultado do trauma. Por exemplo, pensa-se que neurônios no Nucleus Lócus Coerulius (NLC), (parte do Sistema de Ativação Reticular – “Reticular Activating System” – RAS), permanecem paralisados em um estado de ativação total. Como resultado disto, o Núcleo envia adrenalina (através dos filamentos adrenérgicos) para ambos os sistemas cerebrais límbico e neocórtex, mantendo níveis de intensa ativação por todo o cérebro. Para combater este fenônemo, a pesquisa médica procura por drogas potentes que bloqueiem especificamente a atividade NLC-RAS.
No entanto, o que está sendo desconsiderado aqui é que o NLC recebe a maior parte de sua estimulação dos receptores sensoriais da cabeça, rosto, pescoço e órgãos viscerais. Quando uma pessoa percebe uma ameaça através das estruturas cerebrais primitivas, músculos na cabeça, pescoço e vísceras são ativados prontamente para iniciar as respostas de sobrevivência apropriadas. Ao mesmo tempo, fibras que partem do NLC estão ocupadas ativando todo o cérebro através do RAS. Simultaneamente, fibras que partem do tronco cerebral e do sistema límbico, em adição, ativam músculos na cabeça, rosto, pescoço e vísceras – os quais , à sua vez, enviam mais impulsos de volta ao NLC,…etc, etc.
Se um organismo é incapaz de descarregar totalmente a ativação ascendente do SN através de ações de proteção e preservação da vida (i.e., luta ou fuga), então a energia mobilizada permanecerá trancada no somático (cabeça, rosto, pescoço, víscera) – no laço do NLC. A clássica bola de neve – rolando montanha abaixo. Um sistema de feed-back positivo é criado e irá reverberar até que as respostas de sobrevivência sejam finalizadas (realizadas até que se completem) e a energia (no sistema) seja descarregada. Do contrário, a ativação provocará o desenvolvimento de uma complexidade de sintomas do trauma. É por esta razão que medidas preventivas são tão vitais depois que vivenciamos eventos aterrorizantes. Do contrário, sintomas somáticos e de dissociação irão se formar para limitar, restringir, prender, conter a intensa ativação das respostas de sobrevivência não descarregada. A formação de sintomas traumáticos é uma adaptação não consciente cujo objetivo é o de prevenir que o organismo continue sobrecarregado. Embora seja muito mais fácil prevenir o trauma, ainda é possível resolver muitos dos efeitos dos sintomas traumáticos, mesmo que profundamente arraigados.
Cada vez que Jody era capaz de completar ações defensivas que haviam sido interrompidas e presas em sua cabeça e pescoço, e conseguia descarregar a energia atada a elas, ela era capaz de remover o combustível do NLC/RAS – da espiral do feedback neuromuscular. Isto resultou em uma gradual e progressiva desativação do sistema de ativação global que governava seu cérebro e corpo.
Memória e Cura
A experiência básica de Jody a respeito de si mesma começou a mudar enquanto ela completava e integrava os procedimentos implícitos que haviam sido interrompidos. A questão relativa a lembrar-se ou não do que de fato havia lhe acontecido é irrelevante. Completando os procedimentos de sobrevivência implícitos, ela começou a formar uma narrativa clara e nova. Esta nova estória incorporava imagens arquetípicas, sensações, sentimentos de morte, renovação e renascimento, assim como imagens do evento. Enquanto ela tinha tremores gentis e palpitações, visões de faíscas pretas tremendo substituíram as imagens assustadoras de seu assalto.
Um dos aspectos paradoxais e transformativos da memória traumática implícita é o de ser mutável; ou seja, quando acessada de modo enriquecedor (através do ‘felt sense’), ela, por sua própria natureza, muda. Para além dos fragmentos esmagados de sua psique profundamente machucada, Jody descobriu e nutriu um novo e emergente self. Das cinzas da garota freneticamente ativada, hipervigilante, congelada e traumatizada de 25 anos atrás, Jody começou a se reorientar para um novo (e menos assustador) mundo. Gradualmente, tornou-se uma mulher mais fluida, mais viva, resiliente e mais consciente de sua capacidade de se defender com firmeza sempre que necessário, de sua capacidade de se entregar em êxtase tranqüilo.
*1 – A palavra “felt-sense”, do original em inglês, é aqui traduzida como “senso-percepção”. O autor usa o termo para se referir à atividade da consciência de sentir e reconhecer o sentido da experiência vivida no momento exato em que ela está sendo vivida; o “senso sentido”.
*2 – De acordo com Eugene Gendlin, Ph.D., que criou o termo em seu livro intitulado Focusing (Bantamm Books, 1981- pág. 32), “o ‘felt-sense’ não é uma experiência mental, mas sim física. Uma percepção corporal consciente de uma situação, pessoa ou evento. Uma aura interna que abrange tudo o que você sente e sabe a respeito de uma determinada experiência, pessoa ou assunto num determinado momento – abrange o todo e o comunica a você de um modo imediato e não detalhe por detalhe”. Uma percepção global da experiência.
TRAUMA - É possível evitar o pior
Terapia criada pelo americano Peter Levine ajuda a eliminar a energia acumulada nos eventos traumáticos.
Entrevista a Gustavo Prudente
O trauma faz parte da condição humana. Essa é a tese defendida por Peter Levine, 64, terapeuta americano que há cerca de trinta anos trabalha com o tema. Ao se questionar por que somente os humanos padecem desse problema, muito embora os animais passem diariamente por situações de perigo, Levine percebeu que nós, ao contrário dos animais, somos em muitos casos inibidos de completar o ciclo fisiológico natural do corpo após um evento traumático. Segundo o terapeuta, o acúmulo de energia depois de situações estressantes é eliminada espontaneamente pelos bichos por meio de reações como tremores, enquanto nós podemos manter a energia congelada por anos, dando vazão a sintomas que vão de dores crônicas a pânico e depressão. Para ajudar as pessoas a eliminar gradativamente esse acúmulo de energia, Levine criou a Experiência Somática, abordagem que hoje conta com cerca de 1800 profissionais em cerca de 18 países – 200 só no Brasil. Seu livro mais famoso, “O Despertar do Tigre” (Editora Summus), foi traduzido para 11 línguas e explica as bases de suas teorias.
Se você fosse fazer um relatório sobre o trauma nos últimos 30 anos, qual seria o resultado?
A definição atual do trauma nos levou para longe da experiência do que realmente é. Entre os indígenas, na América do Sul, havia muito conhecimento sobre o trauma, e eles o chamavam de “susto”, para usar o termo em português. Isso realmente expressa o sentimento do que ele realmente é. O trauma é parte da condição humana. Mesmo quando não existem guerras ou desastres naturais horríveis, ainda assim nosso sistema nervoso pode se sobrecarregar, a ponto de colapsar. Então, acho que um relatório sobre o trauma teria de dizer que a situação geral está pior. E quando as pessoas estão traumatizadas, elas tendem a reagir de duas formas: ou ficam doentes e desenvolvem sintomas ou elas atuam o trauma, geralmente por meio da violência.
O que é pior: o aumento de situações traumáticas ou a diminuição da nossa capacidade de deixar o organismo lidar com elas?
A violência não muda rapidamente, nem os desastres naturais – eles só vão piorar. A questão é como ajudar as pessoas a não se tornarem traumatizadas. Nós enviamos dez terapeutas, para a Tailândia e a Índia, após a tsumani, para trabalhar com crianças e adultos que perderam seus familiares. O impressionante é que num período curto de tempo, às vezes menos de uma hora, essas pessoas foram capazes de evoluir do choque e da completa impotência para engajar-se de novo em suas vidas. Você podia ver em seus rostos e em seus corpos que eles estavam experimentando alegria. Uma mulher nos disse: “agora eu posso ir procurar meus filhos”, referindo-se ao lugar onde eles mantinham os corpos das vítimas. Atualmente, também estamos trabalhando com as vítimas do furacão Katrina, nos Estados Unidos.
E como foi feito esse trabalho?
Trabalhamos com algumas pessoas individualmente, e boa parte de forma não-verbal. Como muita coisa está no corpo, pois se tratam de respostas biológicas e fisiológicas, quando guiamos as pessoas a ir além dessas respostas, não usamos muita conversa. Não analisamos demais as coisas.
Todo trauma pode ser curado, ou há traumas com os quais é muito difícil lidar?
Sim, há traumas muito difíceis de lidar. A negligência e a brutalidade durante a infância são, na verdade, os traumas mais profundos. Podemos ajudar essas pessoas, e de forma excelente, algumas vezes. Mas acho que, para elas, é uma grande luta, muito embora elas possam ser curadas. Temos trabalhado, inclusive, com psicóticos. Mas isso exige habilidades especiais e tempo – talvez um a três anos de terapia.
Sua terapia é muito diferente da terapia analítica e da terapia catártica. Por que isso? Esses outros tipos de terapia podem contribuir para agravar o trauma?
Comumente, quando há muito trabalho catártico, a pessoa pode retraumatizar, porque ela revive o que aconteceu, e o sistema nervoso não consegue diferenciar quando é real e quando você está revivendo. E quanto a falar… Veja, a parte do cérebro que é afetada pelo trauma é a parte primitiva – o cérebro límbico e instintivo. Então, as palavras não possuem nenhum efeito aí – mas a consciência sim. Você pode usar as palavras para ajudar as pessoas a ficarem conscientes. Na verdade, nós encorajamos as pessoas que já fazem outras terapias a incorporarem o que nós ensinamos.
Você tem alguma dica para que as pessoas previnam o trauma?
Em muitos casos, depois que coisas assustadoras acontecem com as pessoas, elas vão chacoalhar e tremer e têm sentimentos variados. E isso é parte do processo de cura. Nesse caso, a pessoa que está com elas deve dizer: “está tudo bem, deixe isso acontecer”, ou até mesmo embalá-las – talvez não fisicamente, como você embala um bebê, mas embalá-las com a sua presença.
Peter Levine explica, em O despertar do Tigre (Summus Editorial): “O choque traumático ocorre quando experienciamos acontecimentos potencialmente ameaçadores à vida que superam nossa capacidade para responder de modo eficaz”.[...] E adiante: “Um humano ameaçado precisa descarregar toda energia mobilizada para negociar essa ameaça ou se tornará uma vítima do trauma. A energia residual não vai simplesmente embora. Ela persiste no corpo e, com freqüência, força a formação de uma grande variedade de sintomas, por exemplo: ansiedade, depressão, problemas psicossomáticos e comportamentais. Esses sintomas são o modo do organismo conter (ou encurralar) a energia residual não descarregada”.
Memória, Trauma e Cura
Por.: Peter Levine, Ph.D. – Tradução.: Hulda Bretones
Artigo originalmente publicado em inglês sob o Título “Memory, Trauma and Healing” by Peter A. Levine, Ph.D. em Alternative Health Practitioner, No. 2, Summer 1998 – EUA .
“A função do cérebro é selecionar o passado para diminuí-lo, simplifica-lo, mas não preserva-lo”. – Henri Bérgson, em A Mente Criativa, 1911
A atual controvérsia sobre a assim falada falsa “recuperação” da memória traumática, levanta uma série de questões intrigantes para os terapeutas. De onde estas memórias “falsas” vêm e qual a função delas? Ainda mais importante que isto, qual é a função da memória na compreensão e tratamento do trauma?
Por volta de 1.900, o filósofo francês Henri Bérgson trouxe à luz alguns ‘insights’ profundos sobre a natureza da memória, que só recentemente vêm sendo considerados pelos pesquisadores e clínicos contemporâneos. Bérgson teorizou que existem duas formas diferentes e fundamentais de memória; uma consciente e outra inconsciente. O neurocientista Daniel Schacter (1996), em um volume de leitura agradável, intitulado “Investigando a Memória”, descreve o estudo de um paciente que havia sofrido um sério ferimento na cabeça. Este homem (chamado Mickey) não tinha memória de suas experiências recentes. Em uma entrevista, Schacter indaga Mickey sobre uma série de questões triviais cujas respostas seriam dificilmente conhecidas, tais como, “Quem detêm o recorde mundial de dar apertos de mãos?”, “Aonde aconteceu o primeiro jogo de baseball?”. Sem qualquer surpresa, Mickey não sabia as respostas. A seguir, Schacter fornece as respostas. Indagado a respeito das mesmas questões vinte minutos mais tarde em outra sala, Mickey responde corretamente (Teddy Roosevelt e Hoboken, New Jersey, etc.). No entanto, ele não se lembra de como conseguira as informações. Pensa que talvez através de sua irmã. Então, embora ele tivesse uma memória implícita de seu encontro com Schacter vinte minutos antes, ele não tinha a memória explícita dele.
Observações semelhantes a esta, assim como extensas pesquisas realizadas por psicólogos experimentais, neurocientistas cognitivos e clínicos, confirmam que nós, humanos, possuímos duas formas nitidamente diferentes de memória; uma explícita e consciente, e outra implícita e inconsciente. A descrição do estranho comportamento de Mickey por Schacter ilustra a curiosa “dissociação” entre os aspectos conscientes e inconscientes da memória.
Existe um tipo de memória muito importante para a compreensão e o trabalho com trauma, que forma a base para a marca do trauma no corpo e na mente, que é implícita e profundamente inconsciente. O aspecto dinâmico da relação entre os elementos implícitos e explícitos de uma experiência é muito importante na resolução do trauma e na questão da memória “falsa”.
Memória como Procedimento
O tipo de memória utilizado no aprendizado da maioria das atividades físicas (andar, dirigir um carro, andar de bicicleta, esquiar, etc.) é uma forma de memória implícita chamada “memória de procedimento”. Memórias de procedimento ou “memórias corporais” são seqüências aprendidas de “atos motores” coordenados e reunidos em ações de mesma intenção. Você pode não lembrar explicitamente como e quando você aprendeu as ações (como Mickey), mas no momento apropriado elas são (implicitamente) “lembradas” e realizadas simultaneamente. Estas “memórias motoras” (padrões de ação) são basicamente formadas e orquestradas por estruturas involuntárias no cerebelo e gânglio basal.
Procedimentos são primariamente não conscientes, e os esforços em aprendê-los conscientemente geralmente são contra-produtivos. Imagine tentar aprender como andar de bicicleta, esquiar ou fazer sexo através de instruções escritas. Impossível fazê-los. Um livro pode lhe apontar a direção ou indicar por onde começar, mas a aprendizagem acontece instintivamente, através do erro e do acerto.
Trauma diz respeito a procedimentos que o organismo executa quando exposto a um estresse extremo, a ameaças e danos. A falha em neutralizar estes procedimentos implícitos e retomar a homeostasia está na base dos sintomas debilitantes e mal-adaptados do trauma.
Completar e Lembrar
“As ações devem prosseguir até que se completem. Qualquer que seja o ponto de partida, o fim será belo. Uma ação é vil (somente) porque não foi finalizada”. – Jean Genet, Thief’s Journal
Em resposta às ameaças e danos, os animais, incluindo os humanos, executam padrões de ações não conscientes e biologicamente determinados que os preparam para o encontro com a ameaça e para a sua defesa. A estrutura do trauma, incluindo a ativação, a dissociação e o congelamento, está baseada nos comportamentos evolutivos de sobrevivência predador-presa dos répteis, mamíferos e primatas. Quando ameaçados ou machucados, os organismos recorrem a uma variedade de respostas motoras possíveis, corroboradas por ajustes nos sistemas nervoso autônomo e visceral. Orientamo-nos, planejamos, esquivamo-nos, endurecemos, retraímo-nos, encolhemos, retratamo-nos, lutamos, fugimos, congelamos, corremos, colapsamos, etc. Todas estas respostas coordenadas são biologicamente determinadas – são ações que o corpo faz para proteger e defender a si mesmo. Só quando estas respostas de orientação e defesa são oprimidas, soterradas destruídas, interrompidas, confundidas ou dominadas por completo é que o trauma acontece.
Os corpos das pessoas traumatizadas retratam as marcas de suas tentativas frustradas, não bem-sucedidas, de defender a si mesmos diante da ameaça e dano. Porque as respostas foram soterradas, sua execução, normalmente contínua à ameaça, tornou-se truncada, mutilada.Trauma é fundamentalmente uma resposta biológica de defesa incompleta, altamente ativada, congelada no tempo. Por exemplo, quando nossa maquinaria neuromuscular e metabólica nos preparam para a luta ou a fuga, músculos pelo corpo inteiro tornam-se tensos em padrões específicos de prontidão de intensa carga energética. Quando somos incapazes de completar as ações apropriadas, descarregando assim a tremenda carga energética gerada pela resposta de prontidão, esta energia permanecerá presa a padrões específicos de prontidão neuromuscular. O feedback aferente para o tronco cerebral gerado por estas respostas neuromusculares autônomas incompletas mantém um estado de aguda, e a seguir crônica, ativação e disfunção no sistema nervoso central. Pessoas traumatizadas não estão sofrendo em decorrência de uma doença no sentido normal da palavra. Elas se tornaram fixas em um estado de ativação. É difícil (senão impossível) funcionar normalmente dentro de tal circunstância.
As respostas residuais incompletas (as “marcas” das tentativas mal sucedidas de defesa) são as bases da memória (implícita) traumática. Assim como Mickey foi incapaz de se lembrar como havia obtido as respostas às perguntas triviais, o trauma não é “lembrado” em uma forma consciente e explícita. Ele é codificado como procedimento implícito baseado em reações de sobrevivência biológicas. Estes procedimentos incompletos procuram a realização e integração, e não a recordação (explícita). A compulsão que tantos sobreviventes de trauma têm de “lembrar” é, freqüentemente, uma interpretação errada da profunda premência e necessidade de completar (finalizar) as respostas de sobrevivência, altamente carregadas, que foram abortadas ou mutiladas no momento em que foram solapadas. Este é um fator significativo na gênese da memória “falsa”.
Numa tentativa de racionalizar suas respostas de sobrevivência hiperativadas (incompletas) as pessoas traumatizadas irão, com freqüência, criar estórias explícitas e energeticamente equivalentes às suas experiências internas. Estas memórias podem ser precisas somente no sentido de serem metáforas para o que está armazenado implicitamente. Muitos sobreviventes de trauma precisam de uma “explicação” para os seus estados internos perturbadores. Por exemplo, tenho trabalhado com inúmeras pessoas que chegaram até mim completamente certas de que tinham sido molestadas ou raptadas quando crianças. Em muitos casos, as pessoas estavam corretas, mas não em todos eles. Vários clientes tinham criado interpretações que pareciam explicar seus sintomas, mas, na verdade, eles haviam sido traumatizados por procedimentos cirúrgicos na primeira infância. Para uma criança, um procedimento cirúrgico assustador pode ser vivido como um rapto.
Não é imprescindível que você se lembre explicitamente do evento traumático para que a cura aconteça. O trauma é implícito. O que é verdadeiramente importante para a resolução do trauma é a finalização das respostas incompletas à ameaça e, em seguida, a descarga da energia mobilizada para a sobrevivência. Quando a memória (de procedimento) implícita é ativada e finalizada no e pelo corpo, uma narrativa explícita pode ser construída; não o contrário disso. Deste modo, os sobreviventes podem começar a se re-lembrar, isto é, a associar os aspectos separados (dissociados) de suas experiências corporais e descongelar as energias congeladas, que é o âmago de seus traumas. Assim, eles começam a integrar a experiência implícita em narrativas conscientes e coerentes. Estas estórias não são falsas nem verdadeiras. Elas contêm um equilíbrio de elementos (harmonização), alguns dos quais são historicamente fiéis e precisos. Outros são elementos simbólicos de estados sentimentais, enquanto a função principal de outros é a de impulsionar e promover o processo de cura.
Jody
Há vinte e cinco anos atrás, a vida de Jody foi profundamente abalada e prejudicada. Enquanto caminhava por um bosque próximo à casa de seu namorado, um caçador aproximou-se dela e iniciou um diálogo. Era Setembro, meio do mês. Havia uma neblina no ar – seu namorado e outros que por ali estavam não se surpreenderam quando viram alguém aparentemente cortando madeira. Na verdade, um homem louco estava violentamente golpeando por várias vezes a cabeça de Jody com sua espingarda. A polícia encontrou Jody inconsciente. Próximos do local encontravam-se lascas da coronha da espingarda, arrebentadas e espalhadas durante o violento ataque. Quando vi Jody pela primeira vez, a única recordação que ela tinha do evento era limitada e confusa. Ela lembrava vagamente do encontro com o homem e de acordar no hospital alguns dias depois. Jody vinha sofrendo de ataques de ansiedade, enxaquecas, problemas de memória, depressão, fadiga crônica e dores crônicas nas regiões da cabeça, costas e pescoço (diagnosticadas como fibromialgia). Ela foi tratada por fisioterapeutas, quiropratas e vários médicos. Um ano antes de nosso primeiro encontro, ela havia escorregado e caído de costas enquanto patinava no gelo. Depois desse evento, ela mal conseguia obter um desempenho razoável no seu dia-a-dia.
Jody, como muitos indivíduos feridos na cabeça e traumatizados, agarrava-se tenaz, desesperada e obsessivamente numa tentativa de recuperar a memória de seu trauma. Ela parecia dominada pela idéia inconsciente de que ao resgatar a memória, poderia se libertar das garras esmagadoras de sua experiência. Em nossa primeira sessão, Jody tentou duramente lembrar, reunir vagas imagens do hospital e a tênue recordação de estar conversando com o caçador; mas nada aconteceria; apenas uma frustração imensa… e um esforço intenso… tentando voltar à cena e retornar com o self intacto que conhecia antes do terrível ataque.
Quando insinuei que era possível encontrar a cura sem a necessidade de lembrar do evento, observei um brilho de esperança e uma expressão de alívio momentâneo no olhar e no rosto de Jody. Conversamos por algum tempo, recapitulando sua estória e seu grande esforço em desempenhar-se normalmente no seu dia a dia. Depois de traumas como este que Jody viveu, pessoas anteriormente normais sentem-se, com muita freqüência, levadas à beira da insanidade. Jody estava muito assustada; sentia um medo irracional de ter sido prejudicada para sempre.
Voltando sua atenção para as sensações corporais, Jody, lentamente, tornou-se consciente de vários padrões de tensão na região da cabeça e também do pescoço. Com o foco na sensopercepção (no original, ‘felt-sense’ *1), ela começou a observar uma urgência específica (interna-cinestésica) de virar e encolher o seu pescoço. Permitindo que esta “intenção” fosse executada em “micro-movimentos” lentos e graduais, ela sentiu um medo momentâneo e em seguida uma forte sensação de formigamento.
Permitindo que estes “movimentos intencionais” involuntários aparecessem e fossem “gradualmente” finalizados, Jody iniciou uma viagem para dentro e ao longo dos “traços de memória” implícitos e profundamente inconscientes do ataque traumático que havia sofrido. Aprendendo a caminhar dentro de uma tensão dinâmica, entre o controle flexível e a entrega a estes movimentos involuntários, Jody começou a experimentar suaves vibrações e tremores por todo o corpo. Assim, sempre de forma gentil, começou a libertar sua energia presa, truncada (não a partir da memória explícita – ela não tinha qualquer memória explícita neste momento). A memória implícita de Jody estava conduzindo-a no caminho a ser seguido.
Nas sessões seguintes, sua cabeça se desviaria enquanto seus braços e mãos se moveriam lentamente para cima e para frente, em uma postura protetora. Estes movimentos espontâneos eram algumas vezes acompanhados por um breve grito agudo, animalesco, praticamente idêntico aos pedidos de socorro registrados em espécies tão distintas e diversas como pássaros e macacos. Na seqüência, ela sentiu nas pernas o impulso de correr, seguido por posturas mais agressivas. Colocou lentamente os dentes à mostra e, usando suas mãos como se fossem garras, sentiu o ímpeto de combater seu assaltante. Então Jody percebeu sensações (vestibulares) de estar caindo. Sentiu o impacto de cair no chão, seguido de sensações de pânico e de ser ferida na frente e atrás da cabeça.
Completando estas várias respostas, de orientação, de pedido de socorro e de defesa, Jody foi capaz de perceber como ela (seu corpo) preparou-se para reagir na exata fração de segundo em que foi atacada. Ela tomou consciência do movimento de sua cabeça indo para trás e afastando-se, uma visão rápida do cabo da espingarda vindo em sua direção, suas mãos e braços movendo-se para cima; o impulso, antes congelado, de correr e a noção de correr; a profunda noção de lutar (o tremor); o golpe violento na cabeça; as rápidas baforadas, trazendo o odor peculiar do assaltante; o impacto de cair para frente batendo o rosto no chão, e as repetidas pancadas na parte de trás de sua cabeça. Por ser capaz de estender no tempo esta marca do alto impacto do choque, ela não só “relembrou” implicitamente o acontecimento, mas começou a experimentar uma profunda descarga orgânica e a capacidade inata do seu corpo de defender e proteger a si mesmo.
Caminhando adiante no tempo, através do ‘felt-sense’, ancorada nas sensações corporais, finalizando as respostas incompletas, Jody gradualmente prosseguiu em direção à restauração do seu self aprisionado, despedaçado e esmigalhado no momento do choque.
No Teatro do Corpo
Enquanto a memória explícita é acessada primariamente pela cognição, a memória implícita deve ser alcançada e tocada através do corpo. Senso-percepção (‘felt-sense’), como Gendlin denomina (*2), é relativamente subdesenvolvida na maioria dos adultos “pós-industriais” (embora façamos uso dela todos os dias). A sensopercepção é construída através de canais de informações sinestésicas, proprioceptivas, vestibulares e viscerais (autonômicas). Um fluxo (de estímulos) aferente entra no tronco cerebral como informação não consciente (instintiva), e é depois elaborado pela estrutura cerebral límbica (emocional) e pela neocortical (cognitiva). Através do ‘felt-sense’ a informação intraperceptiva (que forma a base inconsciente de toda a experiência) pode ser integrada e trazida para um nível consciente.
Jody, através de sua sensopercepção, foi capaz de extrair o sinal “intencional” de mover sua cabeça a partir da tensão aleatória vinda do ruído do plano de fundo. Repetindo, aqui o movimento “intencional” é não-consciente – é vivido (sentido) como se o corpo estivesse se movimentando por sua própria vontade (movimento volitivo), não por esforço consciente. Seguindo estes impulsos “intencionais” (designativos), vários micro-movimentos espontâneos (mas organizados) foram iniciados. Eram concluídos com a descarga das respostas de sobrevivência incompletas, sob a forma de tremores gentis e vibrações, acompanhados por calafrios e depois por transpirações quentes.
Jody foi sendo profundamente enriquecida por sua capacidade biológica de se defender, assim como pela descarga da energia e por sua habilidade, recentemente descoberta, de alternar entre o controle consciente e a entrega ao reino da sensação involuntária. Naquela fração de segundo, quando o homem enlouquecido levantou sua espingarda, o ‘corpo-mente’ primitivo de Jody orientou-se e selecionou de maneira rápida e apressada os procedimentos de defesa disponíveis e que pudessem ser executados. Embora ela não tenha chegado a executar a maioria destes procedimentos implícitos naquele momento, seu corpo foi energeticamente preparado para realizá-los. Completando estas ações de preservação de vida, vinte e cinco anos mais tarde, ela libertou a energia presa e adicionou ao seu repertório de recursos pessoais a descoberta de que ela tinha, de fato, tentado defender-se.
Nos arredores da África
Descrevi, recentemente, para Andrew Bwaneli, o tipo peculiar de chacoalho, tremor e respiração espontâneos que Jody e outros clientes exibiram em suas sessões. Ele é um biólogo de parques do Centro do Meio Ambiente Mzuzu, em Malawi, África Central. Ele balançou a cabeça euforicamente, e irrompeu;
“Sim… sim… sim! É verdade. Antes de lançarmos os animais previamente capturados de volta à selva, nós primeiro nos certificamos de que eles tenham feito exatamente o que você descreveu” Ele olhou para baixo, em direção ao chão e completou pausadamente: “Se eles não tremerem e respirarem desta maneira antes de serem soltos, eles não sobreviverão… eles morrerão”. Embora os humanos dificilmente morram de trauma, assim de forma tão direta, suas vidas são severamente reduzidas por seus efeitos. Afortunadamente, o trauma não precisa ser uma sentença.
Renegociação – Somatic Experiencing®
“Renegociação” é uma palavra que eu emprego para descrever o processo de cura ou resolução do trauma. É a gradual, gentil e hábil descarga das energias de sobrevivência intensamente comprimidas, acompanhada pela finalização “retrospectiva” das respostas biológicas de defesa e de orientação que foram congeladas no momento do colapso. Não é um reviver catártico do evento traumático, método este que leva a re-traumatização.
Somatic Experiencing® (Experiência Somática) – SE – é o nome que dei a este trabalho. É uma abordagem naturalista de cura do trauma desenvolvido através dos últimos vinte e cinco anos. O SE é baseado na compreensão da razão pela qual os animais na selva são raramente traumatizados, embora tenham suas vidas ameaçadas rotineiramente. A habilidade que estes animais tem de descarregar totalmente a alta ativação das energias mobilizadas para a sua sobrevivência e, depois, reassumirem o funcionamento normal (reorientação), aponta para uma capacidade inata e instintiva de resolução do trauma. Esta capacidade inata é compartilhada pelos humanos, e é um recurso poderoso quando utilizado apropriadamente.
O alicerce do Somatic Experiencing® (Experiência Somática) é construído em uma tradição de educação somática e psicoterapia de orientação corporal. Decorre de estudos neurobiológicos da interconexão multidirecionada entre corpo, cérebro e mente. O estresse pós-traumático é visto não como uma doença neuropsicológica permanente, mas como uma distorção funcional e largamente reversível nos caminhos somáticos, autonômicos e de múltiplas direções, que unem a mente e o corpo. O SE examina os caminhos críticos pelos quais as informações aferentes, vindas dos músculos, articulações e vísceras, é seqüencialmente retro-alimentada para porções primitivas do cérebro para regular os comportamentos de sobrevivência.
Esta abordagem emprega a educação sobre as sensações corporais e a conscientização das sensações corporais como ferramenta básica para alterar estes caminhos. Quando apropriado, a manipulação gentil dos músculos, das articulações e das vísceras é empregada. As estratégias biológicas que habilitam os animais restaurarem a homeostasia após serem ativados por ameaças são aprendidas pelos indivíduos traumatizados. Fortificadas por estes recursos inatos, as pessoas podem transformar o trauma. A viagem de cura ocorre em primeiro lugar no nível biológico e arquetípico, e não no nível cognitivo e biográfico.
Fisiologia do Trauma
Quando Jody começou, de forma gradual, a acessar e liberar a ativação presa nos músculos de sua cabeça, pescoço e ombros, permitindo a finalização das respostas de defesa e proteção mutiladas, seu sistema nervoso foi capaz de alterar o seu ponto de regulação para ativação. A maioria dos pesquisadores psiquiátricos acredita que a química cerebral é permanentemente alterada como resultado do trauma. Por exemplo, pensa-se que neurônios no Nucleus Lócus Coerulius (NLC), (parte do Sistema de Ativação Reticular – “Reticular Activating System” – RAS), permanecem paralisados em um estado de ativação total. Como resultado disto, o Núcleo envia adrenalina (através dos filamentos adrenérgicos) para ambos os sistemas cerebrais límbico e neocórtex, mantendo níveis de intensa ativação por todo o cérebro. Para combater este fenônemo, a pesquisa médica procura por drogas potentes que bloqueiem especificamente a atividade NLC-RAS.
No entanto, o que está sendo desconsiderado aqui é que o NLC recebe a maior parte de sua estimulação dos receptores sensoriais da cabeça, rosto, pescoço e órgãos viscerais. Quando uma pessoa percebe uma ameaça através das estruturas cerebrais primitivas, músculos na cabeça, pescoço e vísceras são ativados prontamente para iniciar as respostas de sobrevivência apropriadas. Ao mesmo tempo, fibras que partem do NLC estão ocupadas ativando todo o cérebro através do RAS. Simultaneamente, fibras que partem do tronco cerebral e do sistema límbico, em adição, ativam músculos na cabeça, rosto, pescoço e vísceras – os quais , à sua vez, enviam mais impulsos de volta ao NLC,…etc, etc.
Se um organismo é incapaz de descarregar totalmente a ativação ascendente do SN através de ações de proteção e preservação da vida (i.e., luta ou fuga), então a energia mobilizada permanecerá trancada no somático (cabeça, rosto, pescoço, víscera) – no laço do NLC. A clássica bola de neve – rolando montanha abaixo. Um sistema de feed-back positivo é criado e irá reverberar até que as respostas de sobrevivência sejam finalizadas (realizadas até que se completem) e a energia (no sistema) seja descarregada. Do contrário, a ativação provocará o desenvolvimento de uma complexidade de sintomas do trauma. É por esta razão que medidas preventivas são tão vitais depois que vivenciamos eventos aterrorizantes. Do contrário, sintomas somáticos e de dissociação irão se formar para limitar, restringir, prender, conter a intensa ativação das respostas de sobrevivência não descarregada. A formação de sintomas traumáticos é uma adaptação não consciente cujo objetivo é o de prevenir que o organismo continue sobrecarregado. Embora seja muito mais fácil prevenir o trauma, ainda é possível resolver muitos dos efeitos dos sintomas traumáticos, mesmo que profundamente arraigados.
Cada vez que Jody era capaz de completar ações defensivas que haviam sido interrompidas e presas em sua cabeça e pescoço, e conseguia descarregar a energia atada a elas, ela era capaz de remover o combustível do NLC/RAS – da espiral do feedback neuromuscular. Isto resultou em uma gradual e progressiva desativação do sistema de ativação global que governava seu cérebro e corpo.
Memória e Cura
A experiência básica de Jody a respeito de si mesma começou a mudar enquanto ela completava e integrava os procedimentos implícitos que haviam sido interrompidos. A questão relativa a lembrar-se ou não do que de fato havia lhe acontecido é irrelevante. Completando os procedimentos de sobrevivência implícitos, ela começou a formar uma narrativa clara e nova. Esta nova estória incorporava imagens arquetípicas, sensações, sentimentos de morte, renovação e renascimento, assim como imagens do evento. Enquanto ela tinha tremores gentis e palpitações, visões de faíscas pretas tremendo substituíram as imagens assustadoras de seu assalto.
Um dos aspectos paradoxais e transformativos da memória traumática implícita é o de ser mutável; ou seja, quando acessada de modo enriquecedor (através do ‘felt sense’), ela, por sua própria natureza, muda. Para além dos fragmentos esmagados de sua psique profundamente machucada, Jody descobriu e nutriu um novo e emergente self. Das cinzas da garota freneticamente ativada, hipervigilante, congelada e traumatizada de 25 anos atrás, Jody começou a se reorientar para um novo (e menos assustador) mundo. Gradualmente, tornou-se uma mulher mais fluida, mais viva, resiliente e mais consciente de sua capacidade de se defender com firmeza sempre que necessário, de sua capacidade de se entregar em êxtase tranqüilo.
*1 – A palavra “felt-sense”, do original em inglês, é aqui traduzida como “senso-percepção”. O autor usa o termo para se referir à atividade da consciência de sentir e reconhecer o sentido da experiência vivida no momento exato em que ela está sendo vivida; o “senso sentido”.
*2 – De acordo com Eugene Gendlin, Ph.D., que criou o termo em seu livro intitulado Focusing (Bantamm Books, 1981- pág. 32), “o ‘felt-sense’ não é uma experiência mental, mas sim física. Uma percepção corporal consciente de uma situação, pessoa ou evento. Uma aura interna que abrange tudo o que você sente e sabe a respeito de uma determinada experiência, pessoa ou assunto num determinado momento – abrange o todo e o comunica a você de um modo imediato e não detalhe por detalhe”. Uma percepção global da experiência.